Alguns contos e histórias pela metade
 
No link, a coisa toda. Abaixo, alguns dos que gosto mais - https://medium.com/@lucaskircher
Depois do almoço, um cafezinho e uma dose de desespero.
 
Existe algo de muito cruel em reuniões logo após o almoço. É um tipo de tortura usada pela máfia mexicana para retirar informações de cativos. Terrível, mas estava acontecendo. Pensei que até mesmo uma visita ao dentista seria mais agradável, mas já era tarde.
 
A coisa toda havia sido organizada por causa de uma campanha que voltou do cliente com uma quantidade absurda de alterações. Quando esse tipo de incomodação acontecia era natural encontrar um culpado. O RH agiu com rapidez. Verdadeiros abutres sobre a carniça. Carniça, carne, restos do almoço. Minha angústia só aumentava enquanto movimentos sincronizados da minha língua me mantinham no controle da situação, impedindo de abrir a boca e acabar com tudo. Eu estava indignado.
 
Um dia antes, o estagiário havia sido demitido. O motivo: bode expiatório. A desculpa: ele não estava de acordo com o perfil da equipe. A verdade: ele nem sabia que campanha era aquela. Eu tinha certeza de que estava passando por uma situação normal, mas ao mesmo tempo tão angustiante e injusta. Uma ira silenciosa crescia em mim enquanto eu seguia lutando em silêncio.
 
A monstruosidade do chefe falava e minhas feições iam mudando constantemente. Por dentro, uma luta tomava conta para não acabar com aquilo. O terror. A ira e inconformidade com a situação. Santo Deus, que angústia! Naquele momento eu era acuado somente por uma simples regra de etiqueta, pois minha paciência há muito havia acabado. A coisa era palpável. Não fiz nada e ele prosseguiu:
- O importante aqui é entender que houve uma falta de gestão no encaminhamento do projeto, faltou a ideia, a estratégia, onde está a lógica nessas peças? Assim não dá. Muito ruim gente. Quem fez esse título?
De algum lugar na mesa apontaram em minha direção. Rapidamente dei uma resposta pronta que jogou toda a culpa em outro setor e voltei a remoer a situação. A briga que seguia dentro de mim continuava a crescer. A discussão também crescia na mesa, enquanto a culpa seguia de uma lado para o outro. Por que não agi agora? Era a minha brecha.
 
Foi então que perdi o controle e aconteceu. Se fosse possível voltar àquele momento, eu poderia ver meu rosto tomar uma forma abstrata, nada humana. De fato foi uma transformação visível, tanto é que alguns membros da mesa me olharam com aquela cara de tacho sem saber o que dizer. No fundo pensavam, e com razão: que tipo de homem enfia meio punho na boca para arrancar um pedaço de carne de entre os dentes? Não importava, estava tudo solucionado. Naquele momento pude pensar com clareza. Maldito estagiário.
Conversas atrás do volante 1
 
- Carlos Alberto, o sinal abriu.
- Opa! Eduarda, me diz uma coisa, como é que contratam gente pro Ku Klux Klan?
- Meu Deus, Alberto, como é que eu vou saber uma coisa dessas? Que pergunta horrível.
- Ué, mas horrível porquê?
- Ora, esse pessoal faz cada coisa maldosa.
- Tá, tudo bem, não tô falando que não, só queria saber como contratam.
- Aí, deve ser no jornal, nos classificados
- Aposto que é junto das garotas de programa.
- Tem anúncio de puta no jornal, Carlos Alberto?
- Esquece, Eduarda. Eu acho que não é no jornal, não. Muito na cara, sabe?
- Olha, o pedestre levantou a mão, tem que deixar passar.
- Ta aí, deve ser assim que contratam.
- Na faixa de segurança, Alberto?
- Não, é a mão. Deve ter um sinal secreto, uma linguagem que o pessoal do KKK usa pra se comunicar com futuros membros. Tipo naquele filme.
- Mas como é que as pessoas vão aprender a linguagem secreta se eles ainda não são do KKK?
- É verdade, não pensei nisso. Será que é uma coisa de família?
- Tipo a máfia, Alberto?
- É sei lá, uma coisa que passa de pai pra filho, sabe?
- Poder ser. Mas e como faz quando casa? A tradição passa pra família do cônjuge?
- Talvez só possa casar com quem é do Klan.
- Klan quer dizer clan mesmo?
- Acho que não. Não sei. Faz sentido se for, né?
- Deve ser sim.
- Sabe, eu acho que é a coisa de família mesmo.
- E tem isso em Porto Alegre?
- Não que eu saiba. Mas no interior deve ter sim.
- Eu tinha um tio no interior que era bem no tipinho desse pessoal do Ku Klux Klan.
- O Tio Edgar?
- É.
- Mas pelas tuas histórias ele parecia ser tão gente boa.
- Ah, Carlos Alberto, ninguém fica falando das coisas ruins dos parentes pros outros.
- Na minha família falam.
- Sim, mas a tua família é toda errada.
- É pode ser. Mas afinal, o que é que ele fazia pra tu achar que era do KKK?
- Aí, ele tinha umas roupas estranhas e era super radical.
- Tá, mas isso não quer dizer nada.
- Ele queimou uma cruz uma vez.
- Eita. Bom pode ser que fosse contra a igreja, sei lá. Como é que era as roupas dele?
- Tinha um capuz estranho, todo durinho.
- Durinho?
- Era pontudo.
- Eduarda, teu tio era do KKK.
- Será?
- Aham.
- Mas até a mamãe já colocou fogo numa cruz uma vez.
- PELO AMOR DE DEUS, EDUARDA! A tua mãe fez o quê?
- É, eu era nova, mas tô lembrando agora.
- Eduarda, tua família é do Klan.
- Não pode ser.
- É sim.
- Aí meu Deus.
- E se a teoria tá certa eu também sou.
- Nunca imaginei que tu te envolveria numa coisa dessas, Alberto.
- Pois é.
- Será que a gente precisa avisar na paróquia?
- Melhor não. Deixa quieto.
- Aí, Carlos Alberto, tô assustada. Como é que fomos nos meter com esse pessoal?
- Calma, mulher, depois a gente pensa nisso. Agora me ajuda a encontrar um lugar pra estacionar.
Textos - Medium
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Alguns textos que escrevo e mais alguns para escrever.

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